segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

10.
Estimado primo,

Espero que esta missiva te encontre a ti e ao teus… que te encontre ao menos já basta.
Desde que partiste as coisas por cá continuam iguais, as mesmas como as lesmas, mas com um copo vazio e bafiento à tua espera, sabes bem qual é, aquele do Sumol, verde e com borda lascada em que adoravas beber o tinto de caixa de cartão e em que cortavas o lábio de quase todas as vezes.

Confio, tenho a mais absoluta certeza de que apesar de estares longe da tua família e da calçada que tantas vezes lambeste e fez de ti a nódoa negra coriácea que és hoje e um ser humano bastante razoável, de que continuas a embriagar-te religiosamente como se o fim do mundo fosse já ali ao virar da esquina.

Nós por cá estamos todos bem, escusas de ficar em cuidados, não nos tem faltado o que comer e muito menos o que beber. De vez em quando o sol raia. Reluz nas mesas da esplanada, mesas novas estas agora, ainda sem história, sem cicatrizes, demasiado polidas ainda. Mas isso resolve-se, tudo se irá compor.

Toma cuidado meu primo com os rigores do Inverno dessa terra que agora adoptaste, não vão eles te apanhar desprevenido e em mangas de camisa numa das tuas expedições ao fundo do copo. Lembra-te que esses ossos são para serem devorados pelos vermes da pátria que te viu nascer e vomitar vezes sem fim.

Não te importuno mais primo, foi bom ter novas tuas. A tua família cá te espera.

À tua! Até breve.

terça-feira, 28 de abril de 2009

9.
Seguiam a mais de duzentos à hora sem capacete, de cabelo ao vento, agrafados ao sofá ao velho. Primos de álcool. Uns Três Duques alarvemente ébrios e destemidos a fugir dos maus.

“Nunca nos apanharão vivos, cabrões!” e outros clichés do género.

Duzentos e muitos, num sofá velho, a bater o red line é obra. A qualquer momento a coisa pode-se desconjuntar toda enquanto perseguimos a televisão com a imagem desfocada e as cores queimadas. O perigo é real. Quase, quase a capotar na curva da morte.

“CABOOOOOOMMMM!” – Hiroshima, Meus Neurónios.

A devastação pós-apocalíptica que sucede ao pequeno cogumelo de fumo que se formou dentro do cabeção é digna de um anime. Eles, os neurónios, pressentem o perigo, temem uns pelos outros. A viagem da ponta do nariz às profundezas do cérebro é veloz.

“Run Forrest, run…” – que te apanham, os vapores das coisas idiotas da vida.

É o Poço da Morte em patins. O bungee jump em elástico do economato. Daqueles grossos, claro.

Fugimos a alta velocidade da suburbanidade letal que ataca a plebe com sonhos de “picket white fences” mas sem as “picket white fences”, dos belos apartamentos, amplos de lindas vistas para a auto-estrada. E os acessos, ai os acessos… tudo ali tão perto.

“Daqui podemos ir para qualquer lado.” – asseguram, não indo a lugar algum.

“Passat por mim no Rossio”. Quase sempre cinzentas, passam por mim na domingueira voltinha dos tristes. Famílias inteiras a exibir o quão mais “cagalhões” são que os outros. A marcha é lenta, lenta.

Segundas, Quartas, Sextas lixo comum. Terças e Sábados plástico. Quintas papel. Domingos, avós, doentes e deficientes.

O Enola Gay aproxima-se perigosamente do nosso sofá prestes a desintegrar-se tal é a velocidade a que nos deslocamos, uma velocidade verdadeiramente próxima do ridículo. Observamos a bomba a cair em nossa direcção em câmara lenta. Aquele silvo, que só se ouve nos filmes de guerra.

“CAAAAABOOOOOOOOOOOOOOM!” – Hiroshima, Nagasaki. Do nosso veículo muito pouco suburbano nada resta, e dos Três Duques de vão de escada apenas restos que nenhum cão rafeiro se atreveria a comer.

“Amanhã é outro dia.”

“Amanhã há mais.”

“Boa noite!”

Sempre, sempre a duzentos e muitos, sem capacete e com o vento a bater nos cabelos já brancos.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

8.
Um Homem-Esplanada não tem medo, tem sede. Um Homem-Esplanada fica muitas vezes retido no trânsito, intestinal. Ninguém escapa ao intestino, não existe nenhum Houdini da merda, nenhum Luís de Matos da sanita. Existe também aquele momento Sherlock Holmes, aquele momento em que a tonalidade da prova produzida permite reproduzir com alguma exactidão o crime.

“Beer, wine, hard liquor blended together in a fine mixture of shit.”

Arrepio caminho agora que há menos trânsito. De volta a mil, nove, nove e quatro aprecia-se a “Parklife”, num shot etílico do mais asqueroso, pulo quinze anos para à frente em constantes capotanços, seguindo pela estrada de tijolinhos amarelos tropeço em “Girls and Boys” que em nove, quatro nem mamavam nas tetas suburbanas das suas mães.

“A felicidade é linda e é uma carrinha a diesel.”

Gosto de os ver espalhados pelo chão, como se fossem pequenos Joaquins Agostinhos que se espetaram de encontro a um cão. Sinto-me o oitavo anão da Branca de Neve, aquele que estava sempre demasiado bêbedo para ir trabalhar na mina e cantar cantigas de intervenção.

Tenho que comprar um anão, não sei para quê ainda. Hei-de lhe arranjar um propósito. Mas um anão pouco mais alto que dois rolos de papel higiénico empilhados um em cima do outro. Não gosto de anões muito altos.

Sinto-me como a bala na cabeça do Hemingway, velha e enferrujada. É o “Ai foda-se!” do Joaquim Agostinho antes de bater no alcatrão.

Caminho triunfante sobre as carcaças dos “Girls and Boys” espalhadas sobre a estrada de tijolinhos amarelos, como se fosse num qualquer filme de guerra dos oitenta, já com a imagem esbatida. Também eu estou esbatido mas não derrotado.

terça-feira, 3 de março de 2009

7.
“You are my sunshine, my only sunshine…” – lambo o pires de amendoins com sal, o terceiro, o meu reflexo no pires é baço e gorduroso. Juro que se semi-cerrar os olhos o Cristo-Rei flutua na espuma da minha imperial. Neste pequeno paraíso todos são livres, as crianças brincam, os traficantes traficam, os cães rebolam, mijam e cagam na relva e os donos dos cães bebem litrosas quentes e rebolam na relva.

Já não tenho idade nem estatuto para me espojar assim na relva e ficar com o cú húmido de mijo de cão alheio. Para mim só o mais digno trono do mais ferrugento ferro verde. Os copos de imperial vazios, estão dispostos sobre a mesa como se de um tabuleiro de xadrez desarrumado se tratasse, mais uma rodada para tentar o xeque-mate.

Há alturas em que nada já importa, quando a pele já se avermelha do sol, os dedos estão negros da tinta do jornal e as letras do pasquim já me parecem desfocadas. Uma Mulher-Esplanada faz um Sudoku manchado por cerveja.

Não percebo o fascínio por um quadrado que tem uns quadrados mais pequenos lá dentro, e imagine-se alguns até números dentro tem. “Exercita o cérebro.” – argumenta a Mulher-Esplanada.

“Faz bem à cabeça.” Ainda demasiado sóbria está esta Mulher-Esplanada hoje.

O que exercita o cérebro é o tentar desenlear-se do novelo de álcool e de tudo o mais que se lhe atire para o entorpecer e o que faz bem à cabeça é não acertar com ela na ombreira da porta ou no chão quando se regressa do rodeo etílico.

“Please don’t take my sunshine away.”

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

6.
Há uma angústia húmida que me incomoda, a chuva que não cessa de cair e os breves lampejos sol que não duram uma “imperial”. É uma angústia como aquela que se tem quando se está numa casa de banho forrada a mármore preto e que tem mini-toalhas que são de pano, pano mesmo para secar as mãos e à primeira mija ofuscados por tanta higiene e beleza nos escorre um fio de urina pela perna das calças de tecido que só se usam em casamentos. E a esplanada ali, solitária a enferrujar.

Um Homem-Esplanada, esplanada sempre que pode, mesmo quando as condições são adversas, desde que a Esplanada esteja aberta. Mesmo sob as mais ameaçadoras perspectivas de chuva e trovoada.

Aos primeiros pingos de chuva que caiem na imperial indefesa, há uma ânsia e secreta esperança de que a ameaça não se concretize. Pingo após pingo eles caiem, quais esferas do Totoloto com os números que nunca temos.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

5.
Chove lá fora. Está frio. Os dias solarengos de esplanadar ainda vêm longe. E as noite cálidas também. Aos Homens-Esplanda resta-lhes apenas as usas fortalezas de solidão comunitária, os mais pequenos e infectos tascos. Quanto mais parco em dimensões melhor, de modo a reduzir a amplitude de movimentos e a capacidade de infligir danos físicos de um qualquer Homem-Balcão despojado de lucidez.

O Homem-Balcão esse animal mítico e belo como a calçada à portuguesa, deve de ser respeitado e venerado pois foi ele permitiu ao Homem-Esplanada rastejar da tasca até à esplanada. Rastejar, literalmente.

Deus criou o mundo em sete dias, e ao sétimo dia enquanto Ele descansava, com um golo mal anulado ao Benfica o Homem-Balcão irritou-se e partiu-o todo. E Deus quando acordou criou os amendoins e os tremoços para distrair o Homem-Balcão, e como isso não sendo o suficiente criou também a “sande de courato”.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

4.
“Bloody Mary, bloody, bloody Mary” – vodka, sumo de tomate, imaculada concepção, virgens que pairam sobre árvores. O cordeiro de Deus, o leitão do Diabo. Do alto do banco do bar, qual púlpito prego para um cinzeiro cheio de beatas e uma mão cheia de cascas de pistachios em cima do balcão. O copo de vidro grosso lascado com um resto de whisky no fundo e cinza do último cigarro, o último dos últimos. Ou uma mosca afogada.

O estertor das quatro e muitas, só nós os dois, eu e tu. O “Último para o Caminho”. A absolvição e a condenação de um só trago. A angústia do estômago antes de engolir o sapo.

O desmontar do equídeo banco sem ser derrubado. Aqueles quatro ou cinco longos passos até ao “o lá fora”.

“Queres um táxi?” – diz a voz lá do fundo atrás do balcão. Agradeço e digo que não, com toda a convicção de que já não sou um Hércules e de que as minhas costas já não me permitem fazer tamanhos esforços. E aonde é que iria pôr um táxi? Já tenho lixo a mais em casa.